A neve caía lentamente
sobre a máquina de guerra estacionada em frente a um pequeno bunker camuflado
no campo branco. Havia algum tempo que ela estava parada ali, a neve já se
acumulava em seu topo e suas duas pernas estavam afundadas até a metade no
grande deserto branco que se estendia até os olhos se perderem no horizonte. A máquina
era conhecida como Big Bad boy entre os soldados da Aliança, uma armadura
robótica de seis metros de altura, com braços curtos e um cock-pit que ficava
no centro do corpo, coberto por um escudo cinético, sua luz azulada pintava a
neve em seus pés de um azul celeste, enquanto seu piloto montava guarda
pacientemente naquele planeta desértico.
Seu último pensamento
foi; “O que eu vim fazer aqui...”.
Um buraco ficou no lugar
do escudo, da cabeça e das costas da armadura, um buraco de oitenta centímetros
de raio. Dali uma fumaça espessa desceu como gelo seco, rodopiando a cada onda
mais grossa e a cada pequena lufada de vento. O silêncio continuava o mesmo.
A dois quilômetros dali,
um homem se levantou de uma duna de neve. Sua capa tática, uma tecnologia que
lhe garantia invisibilidade, foi desligada, revelando sua armadura
exo-esquelética branca, usava um capacete que lhe escondia o rosto, seu visor
emitia uma fraca luz amarela. Pegou o rifle sniper que utilizava e,
automaticamente, ele diminuiu e se dobrou em vários lugares, até ficar com
quase metade do tamanho. O homem o guardou em suas costas e pois as duas mãos
na cintura, olhando o bunker que mal podia ser visto dali.
__Dois quilômetros... E
eu nem mesmo me esforcei. –disse enquanto se preparava para o próximo passo- Viúva
negra... –sorriu sob o capacete- Fazedor de viúvas, isso sim.
Novamente as cores em
volta do corpo sumiram e sua capa tática foi ativada, deixando apenas o deserto
branco a vista.
...
A porta do bunker estava
trancada, o que já era de se esperar. Arrombar aquilo não seria tão simples
quanto abrir o buraco naquela armadura. Usando sua ferramenta omni, aplicou um
quantidade absurda de omni gel no equipamento de tranca, até que ouviu um
zumbido e a porta se abriu, sugando o ar e quase levando o homem junto para
dentro do bunker. Entrou tirando a neve dos braços e fechou a porta da câmara usando
um console digital. A porta fechou silenciosamente, o ar puro encheu a câmara e
ele sentiu a gravidade se estabelecendo, beirando a normalidade do seu planeta
natal.
__Que absurdo. –disse,
tirando o capacete- A quarenta anos atrás mal sabíamos o que era um campo de
efeito de massa. –ouviu um suspiro no comunicador em seu ouvido- O quê? Acha
que eu já me acostumei com isso azulzinha? –o sorriso cobriu seu rosto cansado-
Eu acabei de fazer um buraco de quase um metro usando um rifle, a dois
quilômetros de distância... Tudo bem, tudo bem... De volta a missão, não é isso
que diria se estivesse de bom humor?
O homem era o ex sargento
Nicholas Korolenko, hoje com seus 65 anos, já apresentava um rosto calejado
pelo tempo no exército, seus cabelos brancos estavam curtos e amassados, a
barba rala era tão branca quanto o cabelo. Alguns poderiam dizer que ele estava
muito velho para isso, mas que se danem, era a única coisa que Korolenko sabia
fazer.
Abriu a outra porta no
painel e o que viu o fez sorrir ainda mais, era um armazém gigante de quase um
quilometro quadrado, todo o teto parecia ser apenas uma lâmpada, o lugar era
muito bem iluminado. Servia como depósito de grandes caixas de chumbo de dez
metros de diâmetro, lacradas de forma que só poderiam ser abertas a lazer. Korolenko
passou a mão em uma delas e deu de ombros, vestindo novamente o capacete.
__Azulzinha, está vendo?
Essas caixas estão lotadas de eezo, certeza.
__Sim, eu sei. –respondeu
a voz no comunicador- Ou você acha que eu teria movido uma montanha de créditos
apenas para que você passeasse em um planeta esquecido perto do abismo?
__Encantadora como
sempre. –sacou a pistola que, da mesma forma que o rifle, se montou em sua mão
e se carregou- Não vejo ninguém, o scanner não mostra nenhuma presença física,
nem mesmo a visão de calor. Alguma sugestão? Quer que eu peça para os
carregadores começarem a...
__Não! Korolenko... –o homem
ouviu uma respiração funda, seguida de um ruído característico-
__Tira essa caneta da
boca. –andava entre as caixas com cautela, analisando o lugar- Você não pensa
direito com ela na boca azulzinha.
Nicholas subiu em uma das
caixas e olhou um panorama, quantas caixas haviam ali? E quanto elemento zero
eles haviam minerado? Aquilo não estava certo, era muita coisa, em muito pouco
tempo. Aprendeu, no exército, que fazer perguntas era uma coisa arriscada. Mas
agora, como todo o avanço planetário, estando em pé sobre bilhões, trilhões ou
sabe se lá quantos “lhões” de elemento zero em créditos, em um planeta no canto
mais afastado da galáxia conhecido como “abismo de Nemean”, onde a pouco fez
uma proeza que nunca pensou ser possível com um rifle, fazer perguntas era inevitável.
Nicholas tirou o capacete
e sentou sobre uma caixa, acendendo um cigarro e pensando nessas perguntas.
Ainda podia ouvir o ruído no comunicador, a coitada da caneta deveria estar
quase em pedaços a essa hora.
__Azulzinha? Abre o jogo
para mim, vai... Você disse que tem quantos anos mesmo? duzentos, trezentos? –baforou
lentamente, sentindo o gosto amargo na boca- Você disse uma vez não sei o que
de que queria ser Justicar não é? Algo haver com justiça e ordem e sei lá o que
mais... Não estou aqui pelo dinheiro, eu sei que não. Você quer fazer algo bom
não é? Se redimir de alguma merda do seu passado...
Ouviu a caneta quebrando
no comunicador e sorriu, se levantando.
__Pode dizer, é esse
planeta, mas não é aqui. –saltou da caixa e sacou novamente a pistola- Que
Deus... ou deuses, tenham piedade do que farão com tanto eezo. Já vi o que
vocês podem fazer com eles, manipulando isso... Céus, eu já vi um soldado ser
arremessado a quase um quilometro de distância por uma de vocês.
__Korolenko. –a voz o
interrompeu- Há uma passagem na ala esquerda do bunker, um túnel que leva a uma
caverna. –ouviu a voz tomar folego e continuar- Ele vai dar em um lago subterrâneo...
__Desembucha azulzinha, o
que foi?
Dados passaram no display
do seu visor, a luz amarela da lente ficou mais clara a medida que os dados
eram processados e apareciam em caixas na frente de seus olhos.
__Ah... isso. Então é de
lá que estão tirando todo esse eezo. A radiação vai...
__Korolenko...
__Deixa disso. Eu sei bem
o que eu devo fazer. –bateu no cinto que carregava, o bolso pressurizado abriu
e levantou a carga que carregava. Tirou do bolso uma caixa do tamanho de uma
caixa de cigarros e a grudou sobre a entrada da caverna- Eu já sabia que não
era pelos créditos. Ei azulzinha... Você vai ficar me devendo uma boa noitada.
Como é que vocês falam mesmo? Fusão? Abraçar a eternidade ou coisa assim?
__Isso mesmo. –disse a
voz trêmula no comunicador-
__Que coisa mais bizarra.
–riu, desligando o comunicador-
...
O corredor foi esculpido
a lazer, o mesmo equipamento que selou aquelas caixas. Provavelmente um robô
minerador. Andava com a arma em mãos, sentia vibrações por todo o corpo, sabia
o que era aquilo. Elemento zero em forma de poeira, estava respirando aquela
merda. Boa parte dela passava pelo filtro do capacete, mal adiantava alguma
coisa. Câncer vai ser a menor de suas preocupações nos próximos dias.
Cada vez mais o corredor
ficava íngreme, até ouvir barulho de agua corrente. Sorriu ao ver que
finalmente o corredor se alargava, até demais...
Era uma caverna
gigantesca, não fazia ideia de seu tamanho. A primeira coisa que viu foi esferas
negras flutuando sobre a superfície da agua, elas pareciam sugar a agua para
dentro de si, como pequenos buracos negros. Um suave brilho purpura era emanado
daquelas esferas, que tinham quase três metros de altura. A segunda coisa que
lhe chamou atenção foi um robô de escavação, autômato, que no momento estava
desativado, sentado sobre suas próprias pernas. Era uma máquina robusta e possante,
tinha certeza que aquilo poderia ser usado facilmente para matar alguém.
A terceira foi um homem,
de costas, operando um terminal holográfico, jaleco branco cobrindo todo o
corpo, a cabeça careca e redonda. Era o doutor Forman McNiver, o cientista
perdido que poderia estar no planeta. Caminhou lentamente com a arma apontada
para o homem, sua barreira cinética brilhava em um azul forte, como se algo
tentasse sobrepujar seu campo de força pessoal. Korolenko não gostava nada
daquilo, nada ali parecia certo...
__McNiver! Doutor
McNiver! Levante as mãos e se vire lentamente.
O doutor se virou e o que
Korolenko viu apenas confirmou seu pressentimento. O homem estava com os olhos roxos,
uma luz purpura emanava forte deles, iluminavam a caverna e ele mesmo. Sua
cabeça parecia desproporcional, grande, inchada, tinha um sorriso débil na
face, as veias de seu corpo pareciam brilhantes sobre a pele. Algo realmente
não estava certo.
__A que devo a visita,
Korolenko. –a voz parecia afetada, como se falasse em frente a um ventilador-
__Ei, ei... Eu já vi
coisas brilhando assim antes. Diminua essas luzes em seus olhos ou vou ter que
diminui-las eu mesmo.
__Eu não posso. –o sorriso
continuava lá- Eu sou assim agora, você está olhando para o novo homem, o
próximo passo, a evolução do homo sapien... Eu sou agora, um homo deus.
__Jesus...
__Você precisa entender,
precisa entender o porquê disso existir, o porquê desta energia existir no
universo! Não vê? É uma energia que você pode tocar! Que você pode,
literalmente, por dentro de um pote! E ela pode... Não, ela VAI... Ela JÁ mudou
toda a forma de existência! De todas as galáxias! E agora... agora... veja
isso...
McNiver começou a brilhar e a
vibrar, de repente não passava de um borrão roxo com forma humana. O jaleco
virou migalhas de pano ao redor daquela figura e Korolenko ponderava seu
próximo passo naquele momento. A voz, antes estranha, agora parecia um grito
espectral, ecoava por toda a caverna, indescritível, incompreensível.
Korolenko ativou o
comunicador e ouviu a voz feminina do outro lado dizendo para fugir, correr, se
salvar...
__Agora entendi azulzinha. –sorriu-
Abraçar a eternidade e essa porra toda.
__Koro... Nicholas!
O ex sargento disparou sua arma, “canhão de
mão” como era chamada. Viu o borrão ser atirado com violência para o lago e,
segundos após, emergir e flutuar sobre a superfície.
__Adeus azulzinha. –disse com a arma apontada
para o doutor, sacando o detonador- Ninguém deveria ter esse tipo de poder.
__Nicholas!
A última imagem que a asari viu no monitor
foi o rosto do doutor McNiver, o ultimo som foi do início de uma explosão. A
imagem daquele rosto inumano e de sorriso débil ficou travado no monitor, a
imagem vibrava e tremia, mas podia ser vista com clareza. Não era mais humano,
não era mais nada do que ela já havia visto em todos os seus anos de vida.
__Eram quase quatrocentos, Nicholas... –disse em
meio a lágrimas- Trezentos e noventa anos.
Desligou o monitor e cobriu seu rosto azul com
o capuz, deixando que a escuridão a abraçasse.