__Mas
pai! –Locke gritou- Minha vida é aqui! O que você quer indo para um país tão
longe? Nem mesmo neva lá!
__Claro
que neva.
Seu
pai era um homem grande, um tanto redondo. Tinha uma barba grossa, cheia e de
um louro limão. Seus olhos eram escuros, castanhos, diferentes do de Locke, o
cabelo ia até os ombros, presos em um rabo de cavalo arrumado. Seu terno estava
desabotoado, a barriga saliente estava à vontade na camisa social branca. Era
um homem grande, quase dois metros de altura.
Locke
massageou as têmporas, não aceitava a ideia de abandonar a Eslovênia, de
abandonar sua vida, seus amigos, seus amores... Até mesmo a política do país
lhe interessava. Seu pai sentou em uma poltrona laranja e suspirou, não gostava
de ver Locke daquela forma, sabia de sua capacidade, de seus talentos.
__Locke...
Você sabia que esse dia chegaria.
__Não,
você me disse que um dia, talvez, pode ser que iriamos nos mudar para o Brasil.
É bem diferente de –disse imitando a voz do pai- “Locke, agora nós vamos para o
Brasil, arrume suas malas”.
__Lembra
das aulas de português? Lembra dos livros sobre a cultura daquele país e tudo
mais? Locke, seremos felizes lá. –sorriu sincero e fraterno- Eu sei que terá
que recomeçar sua vida naquele país, mas sabe que seremos muito mais ricos lá
do que aqui.
__Não
se trata do dinheiro. –Locke caminhou em passos rápidos pela casa, apanhando
seu cachecol e suas botas- Se trata de... –Baldur veio a mente, junto com a
arvore parasitada pelo visco- Se trata de quem eu sou.
“Se
trata de quem eu sou”. Repetiu em sua mente. Ao abrir a porta, pegou a pá em um
suspiro aborrecido e começou a tirar a neve do caminho para a rua. Seu pai
sorriu e se levantou, pegando outra e indo ajudar Locke. Quando terminaram, ele
sorriu e se apoiou na pá, ofegante.
__Você
nunca mais vai precisar fazer isso.
Locke
fincou a pá no chão, o rosto vermelho, os olhos da cor do mar estavam cheios
d’agua. Sofria, sentia a dor de perder tudo pelo que lutou, tudo que criou e
cultivou. Era uma eslovena, não uma brasileira. Se ajoelhou e apanhou um
punhado de neve suja, a amou como era, perfeita em sua impureza. Olhou para o
pai que retribuía o olhar de forma mais amável possível, mas Locke não suportava
o fato de precisar ir embora.
__Tudo
bem. –disse e levantou, devolvendo a neve para o chão- É amanhã?
__De
madrugada. Viagem de urgência. –pegou a pá de Locke e voltou para dentro da
casa-
__Filho
da puta. –disse por fim quando o pai fechou a porta-
...
Locke
tremia com as mãos no bolso, os braços juntos ao corpo. Tentava não mostrar o
nervosismo enquanto o homem da loja tediosamente pegava o troco da caixa
registradora antiquada. Ele olhou para Locke como se olha para um criminoso de
rua, comprando uma faca para tentar seu primeiro roubo, mas não era proibido
por lei, logo Locke poderia comprar o que quisesse naquele supermercado.
Tinha
comprado uma faca pequena de caça e um pacote de bolacha. Quando o homem olhou
para Locke tremendo com as mãos no bolso, simplesmente disse que era para o seu
pai. O caixa deu de ombros, um sorriso com barba a fazer que agradou Locke.
Depois de lhe devolver o troco, o homem no caixa se apoiou no balcão de madeira
e chamou sua atenção.
__Eu
não sei o que você vai fazer com essa faca, e não me importo. –disse sorrindo-
Mas eu posso te perguntar uma coisa?
Locke
suspirou sem paciência e ajeitou os óculos vermelhos no rosto, forçando um
sorriso.
__Claro.
__Se
eu te convidasse para sair... –limpou a garganta, olhando para os lados- Eu
seria um gay ou um macho?
Os
olhos caribenhos brilharam e Locke sorriu sacana, pôs as duas mãos na cintura e
inclinou um pouco o corpo para frente. Usava uma jaqueta verde de lã pesada
pelo frio, seu corpo escondido pela roupa que lhe protegia do inverno.
__Vai
ter que descobrir quando tirar minha roupa, topa?
O
homem riu um tanto constrangido com a resposta tão direta e atendeu outro
cliente que já despejava as compras no balcão de madeira. Locke deu de ombros e
disse um “você que está perdendo” enquanto caminhava sem pressa para fora do
mercado. O caixa ainda olhou Locke saindo, quase em um rebolado. Ficou
realmente curioso em saber se Locke era uma menina com cara de menino ou menino
com cara de menina e sentiu receio de si mesmo, qualquer das opções estaria
errado na concepção dele.
...
Estavam
caminhando fora dos limites da pequena cidade, passando entre pinheiros
acinzentados e coberto por uma fina camada de neve. Ela se acumulava
gentilmente nos galhos, fazendo o papel das folhas que antes ficavam ali.
Baldur ia na frente, meio sem jeito, caminhando um tanto apressado, sorridente.
Se apoiava em um ou outro pinheiro enquanto, ao tropeços, desciam em direção a
um riacho que passava na região.
__O
que foi Locke?
__Quieto!
–disse com as mãos no bolso, a testa franzida em linhas retas-
__Vamos
para o riacho? –perguntou com o mesmo sorriso, Locke viu seus lábios circulados
por aquela penugem que se esforçava para ser barba- Eu lembro quando fomos lá a
primeira vez...
__Quieto!
Já disse, quieto!
Baldur
levantou as mãos em um “tudo bem” e continuou andando. Parou um momento ao ver
um coelho se afundando na neve, saltando novamente e mergulhando. Imaginou uma
coisa boba, “os coelhos são os peixes da neve”. Riu de si mesmo e voltou a
caminhar, Locke olhou o coelho marrom sujo de neve, saltando para longe deles e
pensou a mesma coisa, mas não riu.
Quando
chegaram ao riacho, a água escorria fina, as margens levemente congeladas.
Havia pedras grandes e redondas por toda a extensão que viam até entrar na
floresta, onde se estreitava ainda mais e desbancava em uma série de rochas,
onde fez o seu caminho ao passar dos séculos, as pedras esculpidas pela água. O
riacho se estreitava ali a não mais que dois metros, escorrendo rápido e
seguindo seu caminho. Baldur sorriu ao ver como a natureza era bela ali, as
pedras no meio do riacho eram cobertas por um musgo verde e salpicadas de
branco pela neve, saltou sem medo sobre uma delas e ficou olhando a água que
passava entre aquela rocha, um sorriso sincero no rosto esculpia aquela cena.
Locke
olhava para Baldur com um misto de raiva e pena.
__Eu
vou embora Baldur.
__Mas
já? Nós acabamos de chegar!
Locke
segurou firme o cabo da faca por dentro da jaqueta.
__Eu
vou embora para o Brasil.
Baldur
ponderou por um momento, tentando se lembrar onde ouviu aquele nome.
__É
um país, em outro continente. –respirou fundo, sentia a mão suada em volta do
cabo- Eu não vou voltar mais Baldur, vou embora hoje de madrugada.
O
rapaz saltou de volta e escorregou, caindo de quatro na margem do lago. Locke
se agachou e o ajudou a se levantar. Seu rosto estava vermelho de vergonha, os
olhos cheios d’agua pareciam ainda mais com grandes bolas de gude do que antes.
Locke bateu a neve de seus braços e acariciou seu rosto, segurava as lagrimas
que insistiam em se formar ao vê-lo assim.
__Mas
Locke... Você é tão importante para mim quanto Hodur. –pensou por um momento e
disse choroso- Hodur é meu irmão, você é diferente, você é um importante
diferente...
__É,
eu sei. –os lábios tremiam, uma lágrima escorreu no rosto firme de Locke- Eu
sei, você também é um importante diferente para mim. –o rosto de Baldur estava
frio, gelado, sentia na ponta dos dedos- Você... Você não faz ideia do que
sente por mim, não é?
Baldur
abaixou o rosto por um momento, não conseguia raciocinar direito sentindo o
toque de Locke em seu rosto, sempre admirou aquela pessoa que estava ali, em
sua frente, lhe tocando de forma tão carinhosa, tão compreensiva. Era a única
pessoa que o entendia de verdade, que realmente gostava de conviver com ele,
não apenas na escola, não apenas como “um garoto inteligente” na turma, mas uma
pessoa, um homem.
__Não
sei não Locke. –disse em um sorriso bobo- Mas... Você sempre vai ser a pessoa
mais especial para mim.
Baldur
se segurou um pouco e depois abraçou Locke com força. Aquela pessoa que lhe era
tão especial retribuiu o abraço, segurando-o com firmeza. Era incrivelmente
fofo, pensou, era como abraçar um grande urso de pelúcia. Locke afagou os
cabelos esquisitos de Baldur por um tempo depois os segurou com força e os
puxou, deu-lhe um beijo estralado nos lábios e o encarou por alguns segundos,
onde Baldur retribuía o olhar com um sorriso acanhado e corado.
__Isso
foi...
__É.
–responde Locke- É, é, é... Tá! Vai embora! Xô! Corre! Foge! Some!
Baldur
sorriu e voltou a caminhar, fazendo o caminho de volta. Quando subiu um pouco o
morro, se apoiou em um pinheiro para não cair e gritou para Locke.
__Ei!
Você sempre vai ser minha pessoa mais importante!
__Ainda
está aqui? –gritou de volta- Vai embora!
__Ainda
vamos nos falar pela internet, não é? –disse esperançoso- Boa viagem Locke!
__Vai
embora caramba! –se agachou e fez uma bola de neve, jogando em Baldur- Sai! Me
deixa só!
Baldur
fez o mesmo movimento de “tudo bem” e voltou a caminhar. Locke sentou na neve
segurando o choro até que ele se afastasse o suficiente, depois deixou-se
chorar a vontade.
Eslovênia...
Locke olhou aquele riacho e se levantou depois de quase meia hora, pegou a faca
e jogou-a no riacho, com raiva. Quando enfiou a mão no outro bolso, lembrou da
bolacha que havia comprado para Baldur e que havia esquecido de lhe entregar,
era a sua preferida, recheada de polpa de morango.
__Filho
da puta... –encarou o brilho da faca na água cristalina- Filho da puta... Eu
ainda mato aquele filho da puta. –olhava a bolacha e sentia o carinho que tinha
por Baldur- Filho da... –jogou também o pacote de bolacha no riacho, a raiva
fluía sem rédeas- Filho da puta! –gritou- Eu ainda te mato seu maldito! Eu vou
voltar só para te matar Baldur seu filho da puta!
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